3.5.08

Desapego

Eu exercito o desapego há algum tempo. Não por nobreza, consciência ou filosofia. O desapego sempre foi conseqüência, nunca escolha. Veio tão rápido que nunca cogitei desafiá-lo ou entendê-lo. Era o preço da minha dívida concreta com a liberdade – esse pedacinho de vôo que às vezes nos abandona, fartos de chão. Talvez eu seja o que chamam de “louca”. Tanto quanto os que dormem em vias públicas e arremessam tampinhas de garrafa em céus de prata. Ou os que tecem agasalhos imaginários, com a credulidade de uma Penélope ilhada. Ou não. O provável é que seja mero instinto. Para sobreviver, todas às vezes saí às pressas. E os restos de minhas vidas passadas se resumem a alguns arranhões e estilhaços, pequenos detritos que, sob um olhar mais atento, denunciam-se em riscos que luzem ao sol, sob a pele. Deixei para trás todos os tocos de velas acesas na tentativa de iluminar o escuro, todos os vestidos nos cabides, todos os sapatos nas soleiras, muitas expectativas, barulhentas, guardadas nos armários e vários cacos miúdos de certezas, impossíveis de se refazer. Não havia tempo de colar, limar, tirar poeira, das coisas pequenas, nem espaço para carregar as grandes. Precisava esquecer, seguir o rumo: a porta de saída. Tão veloz e lento como a noite que vira dia, o desapego veio. E depois dele, aprendi a levar comigo apenas o que nunca me abandona e cabe numa caixinha, no centro da palma da mão: minhas eternas inquietudes, a voz da minha mãe cantando coisas de ninar, as histórias de minhas avós, o cheiro do bugari, as mãos de nuvem de pessoas que encontrei e me tocaram sem temer espinhos, um coração que nasceu velho, atado a uns olhos cheios de infância. E uma pedra de lápis lazúli, que um hippie velho me deu, um dia, “pra dar sorte”. Talvez eu esteja mais perto dos loucos e essa sensação de leveza que parte do desapego seja a ilusão plácida dos moinhos de vento. Talvez eu apenas ache que é muito mais bonito ter esperança.

[Juliana Brita]

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