25.7.09

Sequência

Eu era pequena. A cozinheira Lizarda
tinha nos levado ao mercado, minha irmã, eu.
Passava um homem com um abacate na mão
e eu inconsciente:
“Ome, me dá esse abacate...”
O homem me entregou a fruta madura.
Minha irmã, de pronto: “vou contar pra mãe que ocê
pediu abacate na rua.”
Eu voltava trocando as pernas bambas.
Meus medos, crescidos, enormes...
A denúncia confirmada, o auto, a comprovação do delito.
O impulso materno...conseqüência obscura da
escravidão passada,
o ranço dos castigos corporais.
Eu, aos gritos, esperneando.
O abacate esmagado, pisado, me sujando toda.
Durante muitos anos minha repugnância por esta fruta
trazendo a recordação permanente do castigo cruel.
Sentia, sem definir, a recreação dos que ficaram de fora,
assistentes, acusadores.
Nada mais aprazível no tempo, do que presenciar a
criança indefesa
espernear numa coça de chineladas.
“é pra seu bem,” diziam, “doutra vez não pedi fruita na rua.”

[Cora Coralina]

Um comentário:

Paloma Flores disse...

Quantos abacates não nos traumatizaram por aí...